sábado, 19 de abril de 2008

Só depois do fim

Posso ver seus lábios se movendo, mas não ouço as suas palavras. Mal consigo me mover, a dor, latejante, dominando cada centímetro do meu corpo, como centuriões em batalha pelejando contra camponeses insurgentes. Talvez seja esta a dor final e o que reside à frente deste momento é o motivo pelo qual definimos nossos atos ao longo da vida. A Vida. Passando como um filme diante dos meus olhos, poucas memórias intactas dos tempos idos. Como filmes embolorados de uma velha câmera super oito encontrados em uma caixa tomada pela poeira e teias de aranha, as cenas de minha infância se abrem em sua projeção falha, me vejo a acenar com alegria, os braços se movendo com rapidez, somente um borrão, o brilho nos olhos, a primeira bicicleta. As imagens começam a se tornar levemente mais nítidas à medida que o filme percorre os anos, a primeira paixão, os primeiros grandes amigos para toda a vida naqueles anos, as férias que pareciam intermináveis, tardes de sol poente, a luz cobreada em contraste com as nuvens carregadas do verão.
Tenho um lampejo de lucidez, estou sendo levado em uma maca, todos me olham como se fosse a última vez, todos desejando dar o último adeus e ao mesmo tempo desejando que nada disse seja verdadeiro. Vejo lágrimas, olhos vermelhos, pessoas tentando se passarem por fortes nesta hora, tentando serem fortes pelas outras que não conseguem, entrando em ruínas por dentro da fachada de frieza. Vejo borrões, as luzes, as sombras, as sombras.
Estou com 15 anos novamente, estou perto de uma árvore, estou perto do primeiro beijo, tardio para os tempos modernos, mas inesquecível em todas as gerações. Não sei até hoje se a amava, talvez na época não soubesse nem ao menos o que é o verdadeiro amor. Tudo o que parecia grandioso na juventude se tornava insignificantes na vida adulta, problemas maiores, contas maiores precisavam de salários maiores e a vida nunca se tornaria mais simples.
Me resta tão pouco tempo agora, posso ver os últimos grãos de areia a brigar pela vez de passar para o lado de baixo da ampulheta. É curioso e desesperador ver como no final tudo acaba tão rápido. Nossa vida se forma como um grande arranha-céu, com a diferença que nem sempre é planejada, mas em todos os casos nos formamos do alicerce do ambiente familiar, dos amigos, as bases que sempre nos sustentam. A cada ano um novo andar a ser construído, a cada andar uma surpresa, algo a aprender como superar, talvez o amor seja o elevador com seus altos e baixos e lá pelo quadragésimo andar todos os andares começam a se parecer apenas como mais um andar, nada de especial, um após o outro. Por vezes deixamos de usar o elevador para olharmos para as nossas bases e nos esquecemos do seu real valor, nem nos lembramos o que somos por ignorarmos de onde viemos. Mas no final tudo desaba em segundos e o que importa não é em que andar chegamos, mas como fomos felizes em cada um desses andares.
Queria poder dizer tudo o que penso aos meus filhos e netos, queria mais tempo, mais do que tive. Ironicamente, neste tempo extra eu diria muito sobre como não perder tempo. Tive uma vida feliz, disso não tenho do que reclamar, mas por muitos anos eu vaguei como um cego no deserto. Das coisas que desperdiçamos talvez a pior coisa seja o tempo. Vi que podemos nos empolgar com filmes de ação mas no final tudo o que importou foi o drama, tudo o que motivou foi o amor, que correr atrás de quem se ama nunca é desperdício de tempo e que o final da história nunca é o pôr-do-sol seguido dos créditos e da música-tema. Vi que existe uma beleza única escondida em cada folha que consegue vencer o asfalto.

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