terça-feira, 20 de maio de 2008

Visitando o passado - Parte 3 (Final)

Posso sentir o tempo parar, e o vento que assoviava se calar. Ouço o som de metal arranhando, como se precisasse de lubrificação, ouço o som de pedras na terra ao se encontrarem com rodas. Eu tenho medo de olhar, mas não resisto. Aquele homem debilitado, com a barba por fazer, preso à sua cadeira de rodas, é Pedro. É meu irmão.

Não consigo me mover, é como se eu tivesse encarado a Medusa das histórias mitológicas, sinto meus músculos se retesando, sinto medo, puro, simples, gelando a espinha, me fazendo suar a frio. Meu lado racional tenta me resgatar em vão como se eu estivesse caído em areia movediça e cada tentativa de sair só faz com que eu me afunde cada vez mais. Sinto dificuldade em respirar.
- Vai ficar parado aí por quanto tempo? - Disse Pedro num tom sarcástico. - Até parece que você viu um fantasma, he he...
Talvez seja esse sorriso bobo, trazendo lembranças da minha infância, quando meu irmão me provocava antes de correr para perto da nossa mãe para se proteger, talvez seja isso que me deu forçar para me levantar, não me preocupo com a sujeira em minhas roupas, nem mesmo consigo me lembrar da última vez que eu não me importei com isso. Tudo o que me interessa agora é saber como, porquê, quando e onde.
- E-eu t-te vi morrer... - é tudo o que consigo dizer num tom de voz agudo, o som da minha própria voz arranhando as minhas cordas vocais com aspereza.
- Eu pareço um fantasma? Nunca soube de fantasmas precisarem de cadeiras de rodas, se existir uma coisa dessas então a morte é realmente uma merda. - Ele fala com uma calma que, ironicamente, seja a ser inquietante para mim. Coçando a barba rala, com indícios de fios brancos. a vida dura fez que com ele se pareça mais velho do que eu.
- Não. Não parece. Mas também não entendo o que está acontecendo.

- 'Seguinte... aquela doença não era fatal, você, eu, éramos muito novos para lembrar dessa história, mas fomos separados nessa época. Você foi com o pai para a cidade, tentar uma vida melhor, mas eu não podia, eu era um fardo muito pesado a ser carregado, por isso eu fiquei aqui, aos cuidados de nossa mãe. - A paz na voz de Pedro parece estar por um fio, parece estacionado naquele momento infinito antes do soluço que antecede o derramar de uma lágrima.
- Mas a mãe está na cidade, ela foi para lá um tempo depois morar com a gente. Não faz sentido isso que você está me dizendo. - Já se imaginou um daqueles episódios de Além da Imaginação? Como se Rod Serling em pessoa estivesse te apresentando para um monte de gente desconhecida olhando para a tela da tv de boca aberta e babando em cima da tigela de pipoca? Bem, é mais ou menos como eu me sinto agora. Eu sei que o homem que vejo em minha frente é meu irmão, que eu pensava que há muito tempo havia falecido de uma severa enfermidade, mas as coisas que ele me diz não fazem sentido, nada disso faz sentido. Me pergunto agora onde meu pai está, ele me trouxe aqui e sumiu.
- Tá pensando que eu fiquei leso das idéias, né? Acho razoável você pensar assim. E o pai? Ele não quis ficar aqui, ele não aguenta ouvir tudo o que tenho que falar, por isso foi embora com o carro enquanto você chorava e você nem percebeu, seu bestalhão. - Bestalhão, faz tempo que não ouvia essa palavra, essa é o tipo de palavra que parece ter marca registrada e não pode ser usada por outra pessoa. Perdido pensando nisso, resolvo checar se realmente meu pai teria coragem de me largar aqui neste lugar, e, realmente, o carro não está mais lá. Dou uma breve corrida deselegante rumo à estrada buscando ver a poeira se levantando no horizonte, mas nem sinal do meu pai. Volto a minha atenção a Pedro novamente.

- Eu te disse que ele se foi, não como você vê-lo daqui, não no lugar que ele está. - Ele ri, quase orgulhoso do que diz, parece-se muito comigo ao apresentar o projeto orçamentário à junta de diretores sem que ninguém tenha como contestar nada do que eu digo.
- Para onde ele foi? Como ele pôde me largar aqui? Como é que eu volto? - Penso em pergutas infinitas e inúteis mas nada disso parece fazer com que a expressão dele mude. - Tá, depois eu me preocupo com isso. - Ele acena em aprovação, como se estivesse perguntando se podia continuar a contar a história ou se eu ainda ia ficar resmungando por mais alguma coisa.
- Então... (risos abafados por uma tosse fraca) continuando... A nossa mãe nunca saiu daqui, ela foi enterrada à menos de um quilômetro daqui há alguns anos, sofria muito de artrite, sabe? - Eu tento contestar, mas o ar dos meus pulmões é roubado e solto um grunhido quase imperceptível. - Acontece, meu irmão, que o nosso pai, se deslumbrou com a cidade grande, e um homem forte como ele, não demorou muito para encontrar uma princesa da cidade. É essa princesa da cidade que você chama de mãe agora.
- O quê? Mas como você ousa? Não tem o direito de falar assim da nossa mãe! - Cerro meus punhos que tenho a sensação de cortar com as unhas as palmas das minhas mãos.

- Calma lá. Você não está entendendo a gravidade da situação. Eu vou explicar como se você fosse uma criança de 6 anos. Você não só esqueceu de mim com o tempo, mas também esqueceu de nossa mãe. Você e o pai. Nos abandonaram aqui. O pai sempre mandou um pouco de dinheiro através de cartas para os meus remédios e para a nossa comida e roupas, mas numa dessas cartas ele contou sobre a princesa da cidade, foi em menos de um ano da partida de vocês. Eu era muito novo, ainda doente demais, delirava às vezes em sonhos entorpecidos, mas lembro-me bem desse dia, lembro de ouvir o coração da mãe se rasgar como se rasgou o véu do templo quando Jesus morreu na cruz, meu rapaz, não uma coisa agradável de se ver, até hoje eu tenho pesadelos desse dia. - Me sinto como se tudo desmoronasse à minha volta, como se eu fosse um louco tocando lira no meio de Roma envolta em chamas. Eu não tenho como dizer que ele está mentindo, é como se essa verdade fosse como a tubulação de esgoto da minha casa, eu nunca a vejo, mas sei que ela esta lá, no subsolo, carregado toda a sujeira para longe.
Meu Deus. Como pudemos fazer isso? Como eu pude esquecer do meu irmão e da minha mãe? Como meu pai pôde fazer o que fez e nunca me contar?
- Ele te contou, de certa forma. Por isso ele o trouxe aqui, antes de partir para a eternidade.
- Eternidade? Partir?

- Sim, olha parece confuso mas é bem simples meu irmão. O pai queria te contar em vida, oh sim, mas nunca teve coragem aquele velho de coração fraco. Você mesmo pode se lembrar das várias vezes que ele tocou nos seus ombros para lhe falar algo mas desistiu, das muitas vezes que ele parou perto da porta do seu quarto sem falar nada e em seguida saiu sem dizer uma palavra. Ele tentou. Talvez um dos maiores males da humanidade seja tentar, é fácil dizer que tentou. Parece dar uma sensação de alívio, como se limpasse a consciência, mas nunca se engane com isso, a culpa cresce como o pior câncer e te corrói por dentro, rouba a sua humanidade a sua paz. Mas um dia... um dia... chega a hora de pagar pelo que se deve.
- Mas o pai morreu depois de me deixar aqui? O que é o aqui? Para onde ele foi?
- Muitas perguntas, (risos) olha, quando dizem que o brasileiro deixa tudo para a última hora... o pai levou realmente ao pé da letra. Ele estava ao seu lado pelos últimos meses, no mesmo hospital. Vocês estavam juntos no carro quando passaram pelo sinal vermelho e não viram que estava vindo caminhão em alta velocidade, o pai estava dirigindo e levou a maior parte do impacto, você sempre foi um sortudo filho da mãe mesmo.

- Acidente? Hospital? - Tudo parece rodar à minha volta, me sinto pequeno, desprotegido, odeio ficar numa situação à qual desconheço tudo, e quem não odeia?
- Você está num leito de UTI neste exato momento, está em coma há uns 7 meses. O pai, infelizmente, chegou a hora dele, aguentou o que pôde, e, no fim, inexplicavelmente conseguiu entrar em contato com você e te trouxe aqui. Para que você soubesse a verdade. Mas chega de falar, sua carona está vindo. Está na hora de você partir.
- Eu... eu vou morrer também? Não quero morrer. Posso ficar aqui?
- Não tente barganhar comigo, eu nem mesmo existo, você me criou, você está falando através de mim. Agora vai que tem gente te esperando...

É como se imagem de Pedro se afastasse, é como se a casa se afastasse também, tudo começa a ficar claro, uma luz vermelha escura, como um farol de milha se encontrando com as pálpebras quando os olhos estão fechados. Sinto meu peso, estou deitado?
Tenho a sensação de estar usando o meu corpo pela primeira vez, como se não soubesse como me mover, desconfortável como se estivesse usando um sapato novo presenteado pela tia que nunca sabe que número eu calço. Ouço um som característico de hospital, que indica que meu coração está funcionando. E, então ouço vozes, meio abafadas e ao mesmo tempo ensurdecedoras. Minha visão começa a se adaptar à luz ambiente com dificuldade em meus olhos inundados em lágrimas devido ao incômodo. Vejo minhas filhas e minha esposa.

Hoje eu estou quase recuperado, de um acidente aparentemente fatal, na medida do possível, ainda manco muito e preciso de uma bengala para me locomover. Ganhei uma nova de minha esposa no último natal. Depois de um pouco de ajuda de um investigador eu constatei que toda história conturbada da minha família é real. Soube que Pedro também faleceu há alguns anos, sem ninguém para cuidar dele não demorou muito. Mas foi bom encontrá-lo uma última vez, mesmo que tenha sido criação de meu sonho quando estava em coma. Eu mudei muito depois disso, passei a valorizar mais o tempo com a família, comecei a freqüentar a igreja do meu bairro aos domingos, fiz as pazes com Deus, dedico um pouco do meu tempo à obras de caridade que sempre podem contar com as minhas boas e gordas doações. Sei que nada disso vai apagar a culpa de ter esquecido as minhas raízes e a minha família, mas talvez ainda dê tempo de me redimir. Só uma coisa me incomoda. Às vezes posso jurar que ouço
o som de metal arranhando, como se precisasse de lubrificação, ouço o som de pedras na terra ao se encontrarem com rodas.

Fim

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